quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

"Se perdesse dois filhos, o que você faria?"

Hoje, após adiamento inesperado, Nelson e Célia Benevides torcem para que o ex-capitão da PM Daniel Gomes Bezerra não saia impune do júri popular. Em 2007, em Iguatu, ele matou a tiros seus filhos, Marcelo e Leonardo


Os olhos verdes da dona de casa Célia se perdem numa tristeza absoluta. Os do cirurgião Nelson Benevides também derramam desilusão com a lei. Os dois nunca mais pararam de chorar a impunidade de quatro anos e oito meses da morte de seus dois filhos, os estudantes de Medicina Marcelo e Leonardo Teixeira, mortos em Iguatu em março de 2007.

A Justiça ainda piorou a intensidade dessa dor quando, no último dia 30, anunciou o adiamento do júri popular por mais uma semana. Uma testemunha de defesa apresentou atestado médico. O réu do caso é o ex-capitão da PM Daniel Gomes Bezerra. Ele matou cada um dos irmãos com um tiro no abdomen. Alegou ter agido em legítima defesa.

Hoje, no 1º Tribunal do Júri, no Fórum Clóvis Beviláqua, os pais acreditam que o julgamento e uma esperada condenação ao ex-oficial poderá lhes compensar em parte o tamanho do trauma. Na entrevista, exclusiva, concedida no apartamento da família em Fortaleza, a pergunta mais inquietante acabou sendo a do entrevistado: “Se perdesse dois filhos, o que você faria?”.

O POVO – Pergunta inevitável: o que vocês esperam do júri popular, caso não haja nenhum novo adiamento?

Nelson Benevides – Nossa esperança é justiça. Esperamos que o Poder Judiciário dê a mesma resposta que o Governo do Estado deu, expulsando ele (ex-capitão Daniel Gomes Bezerra) das fileiras da Polícia Militar. É isso que esperamos, porque foi um crime bárbaro, cruel. Pela ironia do destino, após um plantão muito pesado, meus filhos foram convidados para ir à churrascaria, numa confraternização familiar, e encontraram esse policial totalmente embriagado. Foi praticamente uma execução, matando o futuro da medicina, a saúde e a vida de uma região. Para o assassino, duas portas, uma de entrada e uma de saída. Meus filhos só tiveram uma, de eternidade. Por isso que esperamos muito. O Ceará inteiro quer uma resposta da mesma magnitude. Só a condenação. Não por vingança, mas que sirva de exemplo para que policiais não executem mais gente inocente.

Célia Benevides – A minha esperança, como mãe, a gente tenta acreditar que vai haver justiça. Mas você sabe que a gente tem aquela fé, se enche de esperança, de repente vem a decepção. Eu, sinceramente... a coisa é tão grave, tão dolorosa, que estou me sentindo sem forças. Desde que meus filhos se foram (embarga a voz), a nossa dor foi transformada em luta. São quatro anos e oito meses. A gente vem, mais um dia, chega cheia de esperança naquele fórum (Clóvis Beviláqua, em Fortaleza), cheia de esperança de que vai haver Justiça, e de repente vem um atestado de uma testemunha que nem estava no local. Não sabe de nada. Nada ele presenciou do momento. Meus filhos foram barbaramente assassinados, meus filhos foram executados. A gente se depara em aceitarem um atestado falso, um atestado sem a CID (Classificação Internacional de Doenças), sem carimbo médico. Você olha, recorrer a quem? É um paradoxo, pedir justiça à Justiça.

OP – Qual foi a sensação de vocês na semana passada, no momento do anúncio do adiamento?

Célia – O meu sentimento de mãe, no meu coração, eu vi e senti meus filhos mais uma vez injustiçados. Foi como se o golpe tivesse sido dado novamente. Foi bárbaro aquilo que houve com a gente. É brincar com a dor do ser humano. Nada justifica ser adiado, nada justifica essa Justiça não haver. É um réu confesso, réu confesso. Eu acredito que só fé, fé, e a gente dizer acredito, acredito. Pôxa vida, o pessoal tem que botar consciência no caso. A violência está se tornando uma epidemia. Hoje fomos afetados, foram meus filhos. E se amanhã forem os seus, de quem quer que seja? É doloroso. Quem passa não quer essa dor para ninguém.

OP – Para o senhor, qual foi esse custo emocional?

Nelson – Foi praticamente o que ela falou, uma decepção não só para nossa família, mas para todas as famílias do Estado. Foi uma revolta muito grande, indignação. Para você ter noção, quando cheguei de volta para Iguatu, porque precisei voltar para dar plantão lá, os funcionários ficaram numa fila pedindo que a gente acreditasse em Deus, que não desistíssemos dessa luta. Que tivéssemos fé na justiça de Deus, que vai acontecer, e a dos homens também. De uma maneira geral, a gente não esperava (o adiamento) porque são praticamente cinco anos de espera. Ele tentou desaforamento (em abril último, o Tribunal de Justiça transferiu o caso da comarca de Iguatu para Fortaleza alegando possível influência aos jurados), veio para Fortaleza, já se dizia que esse júri seria suspenso porque a testemunha iria apresentar atestado. A gente começou a se conflitar. Já chega, são cinco anos de sofrimento, de calvário, de tudo. E, de maneira tão banal e fútil, é suspensa a audiência. Suspenderam provas... Parece brincadeira.

OP – O senhor teme mais alguma estratégia que possa gerar situação danosa ao caso e, pra vocês, emocionalmente ainda mais?

Nelson – No Brasil, tudo é possível. É difícil a Justiça aqui nesse País. Não é à toa que a violência está crescendo. Por quê? Aqui é um verdadeiro paraíso para o bandido. Não existe Justiça. É uma Justiça retardada, é desqualificada. É um país que só vai preso o ladrão de galinha. Você vê isso dos ministros, só perdem o mandato, o cargo. Desvio de bilhões e bilhões, que equivalem a um PIB da Colômbia, Venezuela, ninguém vai preso. O Código Penal Brasileiro foi feito em 1940, quando a média de vida dos brasileiros era de 40 anos. Hoje a média de vida é de 75 anos. Está muito defasado. Ainda tem aquele benefício de um terço da pena, tudo facilita ao bandido.

OP – O senhor passou a buscar também o conhecimento jurídico para acompanhar o caso dos seus filhos?

Nelson – Foi praticamente uma aprendizagem pra gente. Tivemos muitas decepções. Fui aprendendo através de colegas e amigos da Justiça. E de acompanhar e ler a história da violência no Ceará e no Brasil inteiro. A impunidade é o manto negro que acoberta toda a violência e impunidade no País.

OP – Dona Célia, a senhora já pensou o que fará no momento seguinte ao anúncio da sentença?

Célia – Vou continuar vivendo minha vida, voltada para meus filhos, que foi sempre essa minha missão de ser mãe e dona de casa. É onde vou encontrar forças para continuar vivendo, em Deus e nos três que me restam.

OP – Mas pergunto em relação a alguma atitude muito particular sua. Se vai falar algo para eles em pensamento, do que vai lembrar, do que vai querer dizer publicamente...

Célia – Vou agradecer a Deus, porque Ele tudo pode. A nossa vitória, eu sei que virá Dele. Vai me restar isso, agradecer a Deus e saber que meus filhos estão num bom lugar, na glória, e isso vai me fortalecer a continuar vivendo em função dos outros.

OP – E o senhor?

Nelson – A nossa luta é uma vitória inglória. Ela obviamente não vai trazê-los de volta. Mas nós não queremos punição por vingança. Só queremos que a condenação sirva de exemplo para maus policiais como esse. Como o caso de um policial de Iguatu que executou um jovem de uma maneira tão traiçoeira; o caso do Ranier, aqui em Fortaleza, foi outra execução; o caso do jovem Bruce, que estava na garupa de uma moto; então queremos que esses exemplos não aconteçam mais. Porque se não houver justiça, eles não vão temer e os mesmos maus policiais vão continuar matando.

OP – O senhor ficou mais descrente com a lei brasileira?

Nelson – A imprensa foi a parceira mais forte nessa luta nossa de clamar por Justiça. Primeiro foi Deus, depois a imprensa. Toda vida que a imprensa nos entrevista, pergunta se acreditamos na Justiça. É como se a própria imprensa não acreditasse. Infelizmente precisa haver uma mudança no Código Penal Brasileiro, porque a violência cada vez aumenta mais no País por causa da impunidade. Tudo que aconteceu na semana passada pode acontecer nesse novo momento. Um atestado de fulano, beltrano, uma brecha qualquer. Só o que existe nessa nossa lei são janelas. Eu não sei por que um homem que já foi expulso da PM tem um advogado que não é barato, muito dinheiro para pagar. O advogado conseguiu desaforamento, adiamento, será que vai conseguir mais outro? E o calvário da família?

OP – O que dizem para vocês as pessoas que nem os conheçam, não só de Iguatu ou Mombaça, em relação ao caso?

Nelson – Que ele não escapa da Justiça de Deus. O povo tem dúvida da Justiça aqui da terra. Se fosse você, Cláudio, que perdesse dois filhos, o que faria?

Cláudio Ribeiro – (Pausa) Eu não sei. Tenho uma filha de 13 anos e não sei o que dizer. A pior dor para um pai deve ser quando ele enterra um filho.

Nelson – O normal é que os novos substituam os mais velhos, os filhos enterrarem os pais. Quando esse processo alterna, a dor é imensa. Principalmente filho que só dava alegria (levanta-se para buscar um porta-retrato). O Marcelo, de 26 anos, faltava um mês para receber o diploma. Já tinham terminado a parte teórica e estavam em estágio, no internato de medicina. Eles me acompanhavam desde cedo. O Leonardo, de 24, estava a três meses de receber o diploma.

OP – No que vocês pensaram nesses quase cinco anos, especificamente em relação ao Marcelo e ao Leonardo?

Nelson – A gente via um futuro tão belo, brilhante, pela trajetória universitária...

Célia – Como filhos, como crianças, obedientes. Todo pai se orgulharia de ter. Quem conheceu, acompanhou a vida de meus filhos de perto, sabe. Mombaça, Iguatu, eram filhos que nos orgulhavam. E já tinham suas vidas, noivas, pensavam em casar, nos dar netos, aquela continuidade de vida que só iria... mas, infelizmente...

Nelson – Chegávamos, saíamos juntos, entrávamos na sala de cirurgia, voltávamos para casa e almoçávamos juntos. Eram filhos muito presentes. Uma enfermeira chegou a dizer que, em 14 anos, nunca viu um estudante com poder de resolutividade tão grande, “ele nunca tem dificuldade pra nada”. Era um filho de um futuro brilhante. Já estava querendo fazer estágio em Barcelona fazer um curso de imagem.

OP – Eles pretendiam atuar em qual especialidade?

Nelson – Eles faziam cirurgia geral comigo e iriam fazer imagem ultrassom, tomografia. Hoje, em qualquer consultório na Inglaterra, você faz ultrassom, endoscopia, com o próprio médico. Vai se marchar pra isso, ele já estava se preparando. Eram aqueles filhos que todo pai gostaria de ter. Estudiosos, dedicados, seriam médicos de homens e de almas. Eram muito vocacionados, dobravam plantões, faziam aquilo sem sacrifício.

Célia – Médicos de homens e de almas...

OP – Na semana passada, foi a primeira vez que a senhora viu pessoalmente o homem que matou seus filhos?

Célia – Foi horrível. Ouvi quando minha filha gritou dizendo que ele estava lá dentro (da sala do júri). “Ele tá lá dentro”. Foi horrível. Tive medo naquele momento de que ele fizesse alguma coisa de novo com outro.

OP – A senhora vai assistir ao júri e olhar pra o Daniel?

Célia – Não vou olhar. Não tenho condição. Vou assistir a tudo, mas não vou olhar em nenhum momento. Não vou ficar cara a cara com ele. Não saberei encarar aquele verme, não. Vou assistir. A família inteira, vou lutar até morrer pela Justiça dos meus filhos. Vêm as decepções, mas vamos continuar nessa luta.

ENTENDA A NOTÍCIA

O julgamento de Daniel Gomes Bezerra será hoje, a partir das 9h, no 1º Tribunal do Júri. O ex-PM brigou e atirou em Marcelo, quando este urinava próximo a seu carro. Leonardo foi conter a situação e também foi atingido. O caso foi em 17 de março de 200

Cláudio Ribeiro
claudioribeiro@opovo.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.

bate papo

visitantes em todo mundo